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  • Foto do escritorWesley Sa'telles Guerra

A Espanha na encruzilhada de crises: incerteza e memória nas democracias do século XXI

Carlos Frederico Pereira da Silva Gama[i]

No segundo semestre de 2019, as redes sociais na Espanha foram invadidas pelas Taifas – os reinos muçulmanos sucessores do Califado de Córdoba entre os séculos XI e XIII. Na campanha eleitoral que se seguiu ao fracasso do governo socialista de Pedro Sánchez em formalizar uma aliança com os pós-marxistas do conglomerado Unidas-PODEMOS (em fins de Julho), o governo Sánchez foi associado pela extrema-direita a projetos de separatismo. O apoio ocasional de independentistas catalães e bascos havia sido decisivo para a manutenção do governo minoritário do PSOE desde a queda do gabinete conservador de Mariano Rajoy (PP) em 2018, sob denúncias de corrupção. Mas este apoio já havia sido matizado ao longo de 2019, com o desenrolar do julgamento pelas Cortes dos líderes do referendo da independência da Catalunha (Outubro de 2017). O independentismo foi habilmente mobilizado como espantalho pela nova formação da extrema-direita Vox, que obtivera mais de 2 milhões de votos em Abril – numa manifestação de crescimento eleitoral, em similaridade com o ocorrido em outros países membros da União Europeia[ii] (tais como França, Itália e Alemanha).

O retorno súbito do passado à cena política espanhola não se resumiu às Taifas. Em 14 de Outubro, 9 líderes do referendo de independência catalã foram condenados a penas de 9 a 13 anos de prisão por conspirarem contra o estado espanhol. A comunidade autônoma da Catalunha (incluindo seu governo) repudiou imediatamente e com veemência o veredito, com grandes manifestações de rua, ocupação de espaços públicos e confronto aberto com forças de segurança. A reação do governo espanhol foi cautelosa. Em meio à campanha eleitoral, Sánchez prometeu criar dispositivos legais capazes de impedir novos referendos no futuro. Apesar de abertamente referendar o veredito do procés e buscar manter a ordem pública, o governo se negou a usar a força contra os manifestantes – o que reforçou o discurso oposicionista de omissão deliberada e de apoio ao independentismo.

Em 25 de Outubro (pouco mais de duas semanas antes de novas eleições, em meio à revolta catalã), Sánchez retirou os restos mortais do ditador Francisco Franco do mausoléu auto erigido no Valle de los Caídos – antiga promessa de campanha. Em busca de justiça transicional, o Primeiro-Ministro trouxe à tona feridas ainda sensíveis da Guerra Civil dos anos 1930. Ainda que respaldado pela maioria da população, o ato ofereceu novo trunfo à extrema-direita, que passou a acusar o governo socialista de violar a memória histórica ao retirar o Caudillo de seu cenotáfio megalomaníaco.

Como efeitos combinados das mobilizações da memória no processo eleitoral, o apoio do eleitorado aos socialistas se reduziu, em benefício da extrema-direita. O PSOE perdeu 720 mil votos e 3 cadeiras no Parlamento em Novembro. Unidas-PODEMOS perdeu 500 mil votos e 7 cadeiras (ou mais de um quinto do total). Ao buscar se identificar com a extrema-direita sob a liderança de Alberto Rivera, a “nova política” liberal do partido Ciudadanos colheu uma catástrofe – perda de 2.5 milhões de votos, retornando ao status de partido nanico. Enquanto o independentismo se consolidava na Catalunha, os conservadores retomavam 670 mil votos e 23 escanhos. Mas o grande vencedor do pleito foi Vox. A sigla de Santiago Abascal obteve 1 milhão de votos adicionais, passou a governar a comunidade autonomia de Murcia e se tornou a terceira força política do país, 80 anos após a guerra civil e 44 anos decorridos da morte de Franco.

A ascensão súbita da extrema direita na península ibérica fez com que socialistas e pós-marxistas reconsiderassem suas diferenças relativas. Diversas controvérsias referentes aos postos de governo opuseram os líderes Sánchez e Pablo Iglesias (PODEMOS) ao longo de 2019. Nesse ínterim, múltiplos elos entre os dois grupos pareciam separá-lo mais do que suas distâncias em relação à direita.  Enfraquecidos, os partidos de esquerda entabularam, no dia seguinte ao pleito, a primeira coalizão de governo desde os anos 1930. As urnas, porém, os deixaram dependentes – uma vez mais – do apoio de independentistas ou da abstenção dos conservadores e da mais virulenta extrema-direita.

Por um lado, a divisão de tarefas no estado autonômico espanhol criado em 1978 persiste como um foco de disputas entre o governo central e comunidades No rescaldo da eleição de 10 de Novembro, o Partido Nacionalista Basco (PNV) cobrou a Sánchez a transferência do controle orçamentário previsto na Constituição e seguidamente adiado para apoiar sua investidura. Por outro lado, a concertação necessária de um governo minoritário num regime parlamentarista coloca um peso específico na atuação da oposição parlamentar. Nem PP, tampouco Vox (ou os alquebrados Ciudadanos) estão dispostos a fazer concessões para formar novo governo e impedir novas eleições.

Esse último cenário se tornou ainda mais improvável em 20 de Novembro, quando os tribunais de Sevilla condenaram ex-dirigentes do PSOE da Andaluzia (que governaram a comunidade autônoma por quase 40 anos) por um escândalo de corrupção no fim do século 20 (o caso ERE), equivalente a 680 milhões de euros em valores atuais. O discurso anticorrupção que pavimentou a ascensão de Sánchez ao Palácio de La Moncloa agora se voltava contra o PSOE, nas vozes de Abascal e do líder conservador Pablo Casado – uma narrativa pavimentada na indignação cidadã, que reforça o poder dos tribunais como supervisores da polis em mais uma democracia liberal.

Além das controvérsias relativas a mobilizações do passado em eleições nacionais, as eleições para o Parlamento europeu (em fins de Maio) também foram marcadas por aguda polarização[iii], com os votos segmentados em quatro grupos nítidos. Socialistas, conservadores, experimentos da “nova política” e a extrema-direita – mesclada ao populismo e, por vezes, remetendo ao fascismo. O Brexit[iv] estremece o continente como uma possível tendência. Suas consequências sobre o futuro do Reino Unido não são desprezíveis para monarquias multinacionais. Imigrantes se tornaram bodes expiatórios preferenciais para amainar as mazelas da globalização – ainda que os fluxos migratórios tenham se reduzido sensivelmente a partir de 2016[v], em paralelo com as parcerias entabuladas pela UE e países vizinhos do Norte da África e Oriente Médio, tais como Marrocos[vi] e Turquia. 30 anos após 1989, novos muros se erguem na Europa e suas imediações[vii].

Nesses termos, a Espanha nos fornece um microcosmo de tensões vividas num contexto global. Respostas para a crise econômica vivida desde 2008 são poucas e extremamente vagas ao redor do globo. Após a queda do Muro de Berlim e o fim da União Soviética, a democracia liberal calcada numa economia de mercado parcialmente globalizada parecia, além de inquestionável, insuperável. Desde então, os limites de uma economia parcialmente globalizada ficaram por demais nítidos, ao passo que a democracia em diferentes comunidades políticas vem sido alvo de intensa contestação.

O crescimento do populismo vem na esteira do desalento com as promessas desfeitas do século passado. O discurso anticorrupção alimentado pelas Cortes favorece a busca por alívios imediatos. A política em geral passa a ser vista como misto de traição de expectativas, incompetência gerencial e abandono das tradições – traços que favorecem lideranças carismáticas “acima” de partidos em conexão “direta” com eleitorados insatisfeitos e “livres” das amarras burocráticas das máquinas de governo. Ao mesmo, as correntes políticas organizadas em partidos fazem face ao desencanto dos eleitorados via radicalização, abandonando plataformas históricas em busca de sucessos nas urnas.

As contradições da política espanhola oferecem diversas lições para um exame comparativo dos desafios da democracia no século em curso, que não se resumem, tampouco se esgotam, nas urnas.

colaborador

[i] Pesquisador Visitante, Al Akhawayn University in Ifrane (Marrocos). Professor de Relações Internacionais, Universidade Federal do Tocantins.

[ii] Gama, Carlos Frederico Pereira da Silva. “Unification among contradictions: Germany and Europe face globalization in crisis”. SOCIOLOGY INTERNATIONAL, v. 3, n. 1, p. 61‒ 63, 2019.

[iii] Gama, C. F. P. S. (2019). “Uma Espanha dividida vai às urnas europeias”. OBSERVATÓRIO DE REGIONALISMO. Disponível em: http://observatorio.repri.org/artigos/odr-convida-uma-espanha-dividida-vai-as-urnas-europeias-por-carlos-frederico-pereira-da-silva-gama/. Acesso em: 11 de Julho de 2019.

[iv] Gama, C. F. P. S. (2019). “A Window upon Constraints: Three Years after Popular Vote, the UK still requests further Brexit delays”. CERES. Disponível em: https://nemrisp.wordpress.com/2019/04/25/a-window-upon-constraints-three-years-after-popular-vote-the-uk-still-requests-further-brexit-delays/. Acesso em: 25 de Abril de 2019.

[v] Connor, P. & Passel, J.S. (2019). “5 facts about unauthorized immigration in Europe”. PEW CENTER RESEARCH. Disponível em: https://www.pewresearch.org/fact-tank/2019/11/14/5-facts-about-unauthorized-immigration-in-europe/. Acesso em: 14 de Novembro de 2019

[vi] Martín, M. (2019). “Spain will give Morocco €30 million to curb irregular immigration”. EL PAÍS. Disponível em: http://bit.ly/32OnJZ4. Acesso em: 19 de julho de 2019.

[vii] Valdivia, A.G. (2018). “The Externalization of European Borders: Morocco Becomes A Key EU Partner in Migration Control”. FORBES. Disponível em: http://bit.ly/31IX4fa. Acesso em: 26 de dezembro de 2018.

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